A bem-amada - Por Paulo Navarro - O Tempo 15.07.2024
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A bem-amada - Por Paulo Navarro - O Tempo 15.07.2024

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OPINIÃO
A Bem-Amada Entrevista com Ligia Amadio
Publicado em 15 de julho de 2024 | 03:00
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A maestra Ligia Amadio Foto: Isabela Senatores/Divulgação
 
Talentosa, bela e elegante. Elegante, talentosa e bela. Bela, elegante e talentosa. Carismática rimando com simpática. Cosmopolita e sempre pioneira. A maestra Ligia Amadio é a primeira mulher regente titular da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais - OSMG, em 1001 concertos e óperas, dentro e fora do Palácio das Artes. Sua atual apoteose é condução da orquestra, na ópera “Devoção”, que teve pré-estreia, dia 13, em Congonhas, cenário original da trama, mesclando lenda, realidade e abrindo a temporada de óperas do Palácio das Artes, dias 19, 20, 22 e 23, em Belo Horizonte.
Quem convida, com charme e argumentos é a própria Ligia: “Quem nunca viu uma ópera ao vivo, estará perdendo uma das mais fortes e impactantes experiências artísticas já criadas e aperfeiçoadas ao longo de séculos pelo ser humano. No caso especial de “Devoção”, quem não for deixará de conhecer, além do mais, uma parte importante da história e da cultura deste rico e fascinante Estado de Minas Gerais”. Pronto! Podem ajoelhar e peregrinar na entrevista completa, uma ópera de palavras. Uma fábula e uma profecia. Bravo!
 
Ligia, teu “Ligia” não tem acento e Amadio é paulista da Itália?
Sim, minha família paterna é do Veneto, uma região próxima a Veneza. Tenho somente o sobrenome de meu pai, tradição das famílias italianas. De minha mãe, que é portuguesa, herdei o nome, mas não seus múltiplos sobrenomes: Freitas Carvalho Spínola. Eu nasci em São Paulo, capital.
 
Por falar nisso, em recente vídeo, Rogério Fasano, foi enfático, sobre a obrigatoriedade de algumas boas coisas da vida: “vinho tem que ser francês; comida, italiana e carro, alemão”. A ópera também que ser italiana ou simplesmente memorável?
A ópera tem que ser memorável, sem dúvida, seja ela proveniente de onde for! A ópera “Devoção”, de João Guilherme Ripper, é brasileiríssima, da temática ao idioma, mas construída sobre uma estrutura desenvolvida e consolidada pela grande ópera italiana.
 
Você é devota de que, além da música?
Sou devota a Deus, à família, aos amigos, à natureza, à cultura em suas mais diversas manifestações e ao meu trabalho.
 
Por que estou falando de Devoção?
Certamente porque toda a equipe e corpos estáveis do Palácio das Artes, a OSMG, o Coral Lírico de Minas Gerais -  CLMG e Cia. de Dança Palácio das Artes – CDPA, trabalharam intensamente para dar corpo ao importante projeto intitulado “Devoção”, ópera do grande compositor brasileiro, João Guilherme Ripper, que estreou mundialmente em Congonhas, no dia 13 de julho, e será realizada em Belo Horizonte, no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes, nos dias 19, 20, 22 e 23 deste mês.
 
Consegue explicar, em poucas linhas, do que se trata a nova, inédita e encomendada ópera do Palácio das Artes, “Devoção”?
Devoção se inspirou na história de Feliciano Mendes, português que veio ao Brasil em busca de ouro e de fortuna, e que, confrontado com a enfermidade, encontrou a fé. Curado de suas moléstias, pagou sua promessa: espalhar sua devoção erguendo um cruzeiro no alto do Morro do Maranhão. O cruzeiro se tornou local de peregrinação, e a irmandade fundada levou adiante os ideais de Feliciano, erguendo a igreja, o atual Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas.
 
“Devoção” teve sua estreia em Congonhas, cenário original da trama. Como foi reger a OSMG, dentro do Santuário? Foi uma primeira vez?
Foi um evento permeado de muita emoção, irrepetível! Reger a ópera “Devoção” com a orquestra dentro do Santuário, e os solistas, cantores e bailarinos, na parte externa do Santuário (adro e escadarias), representou um enorme esforço de coordenação tecnológica e acústica, mas os aplausos e a emoção do público compensaram este desafio.
 
Como será “Devoção”, no Palácio das Artes?
Um espetáculo grandioso: a ópera será apresentada em sua totalidade e, dessa vez, com todos os elementos em seus devidos lugares: orquestra no fosso, cantores e bailarinos no palco, cenários e iluminação tal qual foram concebidos pela excelente equipe capitaneada pelo diretor de cena Ronaldo Zero. A participação de um elenco estelar de cantores líricos (o tenor Matheus Pompeu, no papel principal, a soprano portuguesa Carla Caramujo, o barítono Johnny França, a mezzo soprano Bárbara Brasil, e o baixo Savio Sperandio), além da performance impecável da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, do Coral Lírico de Minas Gerais, e da Companhia de Dança do Palácio das Artes, tornarão essa produção memorável.
 
Fale, se possível, também brevemente, sobre a música de João Guilherme Ripper e o libreto de André Cardoso.
A música de João Guilherme Ripper, como extraordinário compositor que é, se caracteriza em geral pela manipulação da linguagem de acordo com as necessidades expressivas e dramáticas do texto e do enredo, e ele usa contrastes e os diversos “ismos” (tonalismo, atonalismo e politonalismo), como recursos dramáticos. Mesmo sendo uma linguagem contemporânea, é de contundente comunicação, e o público não se sente afastado da música, ele a absorve e a compreende emocionalmente. O compositor explora ainda o sincretismo das tradições devocionais e musicais mineiras nesta ópera. O libreto de André Cardoso é excelente e muito eficiente, pois conseguiu transformar um acontecimento real, mas com poucos elementos de documentação biográfica, numa história verossímil, que acentua a fé e a devoção como bases constituintes da rica cultura mineira.
 
Regente da OSMG, tudo bem, tudo ótimo. Mas o que é a “direção musical” da ópera, também assinada por você?
A ópera é um dos gêneros artísticos mais completos e complexos que existem. Para ser executada, são necessárias equipes técnicas e artísticas responsáveis pelos figurinos, cenários, iluminação, além, evidentemente, dos cantores, instrumentistas, maestros, pianistas preparadores, diretor de cena e diretor musical, entre os diversos profissionais que participam dessas grandes produções. O diretor musical é quem concebe e dirige toda a interpretação musical da ópera, o que compreende a direção (e a escolha) dos solistas vocais, dos cantores do coro e dos intérpretes instrumentais. Sua equipe está formada por todos os maestros, pianistas, cantores, solistas e músicos instrumentistas. No caso de “Devoção”, da equipe musical participam o regente assistente da OSMG, André Brant, o regente titular e diretor musical do Coral Lírico de Minas Gerais, Hernán Sánchez, o regente assistente do CLMG, Augusto Pimenta, além dos pianistas preparadores (Patrícia Valadão e Bruno Medeiros) e dos maestros internos da ópera.
 
E o diretor de cena?
O diretor de cena é quem concebe e dirige toda a abordagem cênica da ópera, que inclui a performance dramática dos cantores, atores e bailarinos, em conjunto com uma grande equipe que cuida da ambientação (cenários, figurinos, maquiagem, etc). No caso de “Devoção”, é o “regisseur” brasileiro Ronaldo Zero, e sua equipe inclui Jonas Soares (Cenografia), William Rausch (Figurinos), Caetano Vilela (Iluminação) e Jorge Garcia (Direção Coreográfica).
 
E, claro, a direção geral!
A direção geral da ópera é exercida pela diretora artística da Fundação Clóvis Salgado, Cláudia de Lanna Malta. Essa direção engloba todas as demais e ainda inclui todas as ações necessárias, técnica e administrativamente, que possibilitem a realização e a concretização do projeto.
 
Como você convidaria, seduziria as pessoas que nunca assistiram à uma ópera, que é a junção de todas as artes?
A ópera, como já se disse, é a mais completa das artes. Envolve literatura, música, ballet, canto, música instrumental, atuação, cenários, iluminação, efeitos técnicos. Quem nunca viu uma ópera ao vivo, estará perdendo uma das mais fortes e impactantes experiências artísticas já criadas e aperfeiçoadas ao longo de séculos pelo ser humano. No caso especial de “Devoção”, quem não for deixará de conhecer, além do mais, uma parte importante da história e da cultura deste rico e fascinante Estado de Minas Gerais.
 
Finda “Devoção”, já começa a produção da segunda ópera do Palácio das Artes em 2024, “Nabucco”, clássico do italiano Verdi? Outro desafio à vista?
Sem dúvida, será outra produção imperdível do Palácio das Artes. Quem assina a direção de cena é o “regisseur” André Heller e, novamente, assumo a direção musical.  “Nabucco” é uma ópera em quatro atos de Giuseppe Verdi, escrita em 1842, que trata da situação dos judeus exilados de sua terra natal pelo rei babilônico Nabucodonosor II. Com libreto de Temistocle Solera e fundamentada em passagens bíblicas do Antigo Testamento, esta ópera tece uma intricada narrativa que entrelaça amor, política e religião. “Nabucco” consolidou a grandiosidade de Giuseppe Verdi como compositor, tendo logrado um sucesso imediato em sua estreia em 1842. O célebre coro dos hebreus escravizados “Va, pensiero...” adquiriu uma ressonância política, frequentemente interpretada como um apelo à luta pela libertação nacional, que culminaria na unificação italiana.
 
Sobre as óperas “mineiras”. Ano passado, “Matraga”, do universo de Guimarães Rosa; agora “Devoção”, sobre o Santuário de Congonhas. E em 2025? Tiradentes dá ópera?
Essas óperas mineiras são, a meu ver, realizações fundamentais do Palácio das Artes, por inúmeras razões. Considero a realização dessas obras “mineiras” e, especialmente, a encomenda da ópera “Devoção”, iniciativas incrivelmente importantes da gestão do presidente da FCS, Sérgio Rodrigo Reis. Essa ação gerou a criação de uma ópera brasileira e, especialmente, mineira, que enriquecerá o patrimônio artístico cultural de nosso país. Claro que um tema como Tiradentes gera óperas, além de obras de muitos outros gêneros.
 
Já foi feita?
Posso e passo a mencionar algumas: a ópera “Tiradentes” (composta em 1886), de Manoel Joaquim de Macedo Junior, sobre libreto de Antônio Augusto de Lima; a ópera “Tiradentes”, de Eleazar de Carvalho (composta em 1941); o poema para orquestra “Molhem minha goela com cachaça da terra”, com libreto e música de Luiz Carlos Prestes Filho (conta os momentos derradeiros de Tiradentes); a peça “Museu da Inconfidência – Impressões de uma visitação em 1966”, do compositor César Guerra-Peixe (obra que está na programação da OSMG em 2025); a “Suíte Vila Rica”, composta a partir da trilha sonora produzida por Camargo Guarnieri, em 1957, para o filme “Rebelião em Vila Rica”; a “Canção do Herói”, composta por Marcus Viana, em homenagem  ao mártir da inconfidência, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Claro que um tema como este é infinito: muitas outras leituras são possíveis, e seria magistral gerar uma ópera contemporânea que tenha como temática a história da Inconfidência Mineira. Estaremos a postos, com muita honra, caso essa excelente ideia tome corpo.